O pôr do sol chegou e com ele uma ideia suicida surgiu na cabeça de Varis, fugir dessa nova “prisão” hoje à noite.
Mesmo sabendo dos riscos que iria correr, a
sensação de ter as “correntes” desse lugar lhe prendendo não lhe
confortava, pelo contrário, lhe instigavam mais ainda a fugir do local.
Com as cordas que possuía guardadas em sua
mochila, o ladino esperou a calada da noite, ao ouvir os roncos de Edward e
Voltten, ele percebeu que chegou a hora de agir. Com sua mochila nas costas coberta pela capa preta que sobrepunha, sua
espada e adagas posicionadas em sua cintura, um lugar de fácil acesso para garantir
um saque rápido.
A porta foi lentamente aberta e não fez nenhum
som, o corredor estava vazio e os passos dos guardas não podiam ouvidos, as
tochas que estavam penduradas do lado das janelas eram o que havia de mais
brilhante no lugar.
— Perfeito. — Murmurou Varis, ao percorrer os
olhos por toda a região.
O Ladino amarrou a corda, prendendo-a nas
pilastras que as separavam. Com um bom
nó, Varis finalizou jogando a corda para fora da janela e a observou cair
lentamente em um campo verde que havia a alguns metros de lá.
Ele contou os segundos que a corda demorou para atingir o chão e fez mentalmente o cálculo para saber aproximadamente quantos
metros teria que descer. Ao chegar no resultado de dez metros, o ladino segurou
sua corda e a desceu com cuidado para não fazer barulho.
Ao final
da descida, Varis colocou os pés no gramado verde escuro da planície, com um
sorriso de orelha a orelha, respirando o cheiro da grama vagamente molhada, ele
se preparou para dar o primeiro passo rumo a liberdade.
Porém, ele foi surpreendido com uma flecha que zuniu em
seu ouvido, arrancando-lhe uma pequena parcela de seus fios de cabelo não muito
longos que caíram ao lado de seu pé.
Assustado, Varis olhou para trás,
esperando encontrar o arqueiro que atirou a flecha, mas isso não era
necessário.
Como uma pedra gigante em queda livre, o
responsável pela flecha se jogou do telhado que estava escorado e atingiu o solo
poucos metros do lado de Varis, fazendo uma pequena cratera.
A figura completamente coberta por uma enorme
capa vermelha negra possuía um cabelo relativamente grande e desarrumado, barba
por fazer ao redor da boca e estampava em sua face um enorme sorriso sádico.
— Dol. Edgar Varis, Certo? — Perguntou o homem.
O frio tomou conta do corpo de Varis. Era como
se o mesmo fosse levado para um inferno de gelo. Uma mistura de trauma e medo
perante aquela figura misteriosa.
— Como sabe do Edgar em meu nome? — Perguntou o elfo negro gaguejando de medo, tentando sacar a espada, mas falhando, devido ao seu corpo, que se recusava a mover um músculo sequer.
— Como eu sei? Bem, digamos que sei. – Ele
ironizou de forma debochada.
— N-Não quero brincadeiras... – Varis afirmou tentando
ameaçar, mas falhando pelo medo e gaguejando frequentemente. – I-Isso nem ao
menos faz sentido.
— Concordo, mas é o necessário para você saber.
Venha comigo, lhe conduzirei de volta para seu quarto.
— Quem é você?
— Eu? Prazer, Cérbero, caçador e umas outras
coisas aí.
— Sobrenome? – O ladino tentou voltar a postura
original, mas ainda sem sucesso.
— Não lhe interessa. — respondeu Cérbero em
forma de piada. — Venha, tenho o direito de matá-lo se você tentar fugir, mas
eu gostei de você.
— De mim?
— Sim, você se parece comigo quando jovem, de
certo modo. – Cérbero comentou de forma cômica. – Um jeito sempre desinteressado
e com o foco em outra coisa, fora umas outras coisas.
— Então você está na mesma do que eu?
— Aprisionado sem esperanças de liberdade? – Ele
ironizou rapidamente. – Concordo de certo modo, mas diferente de você, eu não
tenho motivos para ter esperança quase.
— E eu tenho?
— Você pode aproveitar um momento que ninguém
esteja te vigiando e fugir, se unir a uma caravana, se casar, ter uma família,
uma filha... – Cérbero ficou em silêncio por um tempo, antes de completar. – Ou
algo do tipo, entende?
Varis estranhou a sugestão de fuga de Cérbero, que supostamente deveria impedi-lo de fugir.
— Você quer que eu fuja? — Perguntou Varis.
— Não me importo que fuja, mas que faça isso
quando eu não estiver encarregado por você. Se eu tiver uma falha dessas, meu
irmão vai ficar desapontado comigo.
Os olhos negros de Varis entraram em contato com
os bizarros olhos marrons de Cérbero pela primeira vez na conversa, eles
pareciam tão vazios e focados ao mesmo tempo, combinado com o sorriso, foi o
suficiente para anular completamente qualquer pensamento de fuga por completo.
— Imagino que eu não tenho muita escolha. – Varis
recuou um pouco, se rendendo as falácias do caçador.
— Apenas aguarde em seu quarto, tenho certeza
que amanhã vai ser um ótimo dia. – Ele ironizou com uma risada suspeita e
bizarra.
A noite continuou e os dois entraram no castelo
pelo portão principal. Com as instruções de Cérbero, Varis foi conduzido até
seu quarto, onde se deitou em sua cama e adormeceu em pouco tempo.
A corda que tinha sido usada para a fuga do
ladino foi retirada pelo caçador que a recolheu e a deixou na frente da porta
do quarto.
Vagando pelo castelo, trilhando os corredores e
as escadas, ele subiu ao topo da torre mais alta da estrutura, que lhe permitia
ver tudo o que rodeava a construção, a pequena vila que havia frente ao forte,
a enorme planície que o rodeava e junto com o pequeno rio que seguia para bem
longe.
Ao olhar fixamente para o horizonte, o caçador percebeu
que vinha vindo em sua direção um pássaro peculiar.
Ele possuía quatro asas, sendo as superiores
vermelhas e as inferiores brancas, dando a impressão que suas asas de cima
fossem uma capa real. Estava amarrada em sua perna, um pacote fino e resistente
de cartas.
A ave pousou no braço de Cérbero que o estendeu
para conseguir desamarrar a linha que as prendia.
Após ter o papel retirado o animal voou para
longe com um simples comando do caçador.
Rapidamente Cérbero percebeu que a primeira
carta do pacote era destinada a ele por ninguém mais que seu irmão. Se
ajeitando rapidamente, ele começou a ler a carta.
Caro irmão,
as coisas aqui em Cartan estão calmas e tranquilas, espero que aí em Kranbar
também estejam.
Os tratados
com Kaplar e seu apoio estão indo bem e a paz impera, espero que continue assim
por mais tempo. Mesmo sabendo que você adora uma briga, espero que concorde comigo.
Esses
últimos cinco anos foram divinos para mim, quase não fui obrigado a usar os
ensinamentos de nosso pai, as poucas vezes que os usei, não precisei das reais
capacidades.
Mesmo
sabendo de seus planos para o futuro, espero que reconsidere a possibilidade de
uma vida normal aqui. Mas, caso ainda queira seguir o real objetivo, eu irei
estar aqui para lhe ajudar.
Assinado:
Ortros.
Ps: não se esqueça de realizar um feitiço da
vida e uma magia branca por dia.
— Ortros... — Murmurou Cérbero. — Você finge esquecer o
que importa, ele ainda está vivo, sua vontade de perder o tempo aqui não pode
ser infinita... tudo vai ruir alguma hora, mudanças
involuntárias irão ocorrer, por mais que você tente mudar, nada vai
acontecer, é como uma torre.
Olhando para o horizonte, as nuvens se moldavam em vultos e dançavam com
as estrelas, a mente do caçador lembrou do céu, lembra do vento. As nuvens que,
mesmo se alterando e fluindo com o tempo, estavam lá em toda sua jornada.
– Edgar, não é... Ele teve um fim merecido. A única coisa no mundo que
realmente possui valor é o laço familiar, você sabe disso.
Ele soltou uma baforada apenas para sentir o vapor de seu hálito, produzindo
umidade para lubrificar sua pele. O olhar fixo nas estrelas proporcionou um
sentimento de tristeza, mas ele estava incapacitado de chorar, continuando seu
lamento.
– Ele nos tirou
tudo! E eu perdi o que tinha antes de saber que eu não tinha. – Cérbero apontou
a unha para a própria garganta e a sentiu aumentar, ficando tão afiada quanto
uma adaga de aço. Porém, ao entrar em contato com sua pele, seu couro só retraiu um pouco, independente do quanto ele tentava estocar. – Ainda temos sentido nesse
mundo, devemos fazer o que fomos destinados, somos a verdadeira forma de defesa
perfeita.
O caçador olhou profundamente para o chão, a queda da torre que ele
estava, superava fácil os cinquenta metros.
Ele encarou o frio verde da grama e teorizou sobre quanta dor ele sentiria se caísse daquela altura.
Ele fechou os olhos e mordeu os lábios, em seu último suspiro que
demarcava o final de seu lamento ele proferiu mentalmente “me leve de volta a
época que valia a pena estar aqui”, ele se jogou mais uma vez para se libertar.
Após cair, tanto na realidade quanto no solo ele se levantou de forma
depressiva.
Ele já esperava isso quando se jogou, mas a sujeira que ficou na sua
roupa era algo novo, sua armadura de couro que residia embaixo de seu pano,
ganhou algumas manchas de lama agora.
Cérbero começou a caminhar novamente na direção de entrada do forte, mas
dessa vez, ele mancou propositalmente, talvez por tentar emular dor, talvez por
não saber o que fazer ou talvez para consolar a si mesmo.
O peito do caçador era apalpado pelo mesmo, junto de toda sua armadura
de couro remendada.
Aquelas peles de animais costuradas em formato de armadura e remendadas a
cada corte que recebia, entraram na mente de Cérbero como espinhos de memória em
sua mente.
Sentindo o corte que lhe fora dado no peito como primeira tentativa de
matá-lo, os rasgos remendados nos braços quando ele não conseguira bloquear as
espadadas com as mãos, ele até mesmo sentiu a borda da roupa que fora costurada
especialmente para ele como um presente.
Uma borda feita com materiais refinados, um couro resistente feito com
criaturas já extintas, tudo aquilo era lembrado como feixes de memória que os
machucava internamente um após o outro.
Ao ver novamente o caçador retornar para o forte, os guardas pensaram em
questionar, mas só de chegar perto eles mudaram de ideia.
Caminhando pelos corredores por alguns minutos ele se reencontrou com
Parysas, que naquele momento, já estava sem sua armadura e prestes a ir dormir
em seus aposentos.
– Pelo visto, vai ficar vagando de novo. – Parysas ironizou se
aproximando de Cérbero.
– Não é como se fosse novidade. – Ele respondeu se desleixando um pouco.
– Demônios preferem planejar a
noite e atacar ao dia.…
– ...porque se atacassem a noite
nós não os veríamos e não ficaríamos com medo. É quase ironia pensar que eles
querem ser vistos em seus ataques do que atacar furtivamente. – Terminou
Cérbero de forma rápida. – Foi eu que te ensinei isso, espera que eu esqueça?
– Não, você é o mais sábio que eu já...
– Parysas, sem isso. – Cérbero o cortou rapidamente. – Eu não me sinto
bem com bajulação.
– Foi mal, só, achei que era bom eu tentar animar.
– Só ignore. Hoje só é um mal dia. – Cérbero sorriu falsamente, enquanto ignorava
Parysas. – Vá dormir, você tem um recruta amanhã.
– Sim. Até amanhã, Cérbero.
Após se afastar do paladino real, o caçador lembrou de seus
cabelos brancos e de seu progenitor.
No fim, ele sabia que ele era só mais uma de suas perdas, mas conviver
todos os dias com os filhos do homem que já significara algo para o caçador,
era mais uma dor a carregar.
Entrando em seu quarto, Cérbero olhou seus poucos móveis.
Uma escrivaninha, uma cadeira com papéis em branco e um tinteiro era o
principal, mas seus mostruários eram inúmeros.
Desde facas, espadas, bandeiras, recordações históricas e afins.
Mas seu principal item, era uma caveira colocada em um
pedestal extremamente protegido, aquele era seu tesouro.
Ao olhar para ele, Cérbero só sentia a dor do inferno.
O item não era mágico, era longe de ser algo útil, mas era algo que
destruirá completamente o caçador.
Ele não tremeu, não chorou, não retraiu os músculos, só encarou o crânio,
encarou o buraco que estavam os olhos, ele ignorou tudo ao seu redor, passos,
grilos, estalar das tochas, tempo, universo e a realidade.
Tudo que ele sentia era dor, sabia que nesse caso não poderia culpar
ninguém, ele mesmo havia sido o culpado por aquilo.
O culpado pelo crânio, o culpado pela dor, o culpado por tudo que
acontecera de ruim.
Após olhar para o crânio por horas, ele desviou o olhar para o lado,
vendo a bandeira verde musgo com uma
Extremamente bem cuidada e limpa ela decorava quase que uma parede
inteira.
Olhando para ela, o sentimento sentido mudara vagamente, a dor
permanecia, mas a ira o tomava aos poucos.
Ele fechou seu punho em raiva, proferindo todas as maldições possíveis
mentalmente.
Um brilho negro misturado com raios vermelhos escaparam de sua mão, que os
atraiu novamente como uma forma de não os manifestas.
Ao acabar sua “reflexão” ele abriu a porta de entrada do quarto e se
deparou com a luz da manhã, mais uma vez ele passou a noite toda apenas encarando
suas relíquias pessoais.
– Um novo dia, uma nova oportunidade de um desastre me obrigar a me
tirar daqui. – Ele falou ironicamente, enquanto tentava esvair os sentimentos
negativos com um simples alongamento.