—
Aqui está! — Disse o senhor, colocando o saco de pano com os itens na mão do
caçador — Todos juntos, como você pediu.
— Ótimo! — Cérbero pegou o saco que
havia pedido. — Se importa se eu...
— Fique à vontade! — Respondeu o velho, já
sabendo o que ele iria perguntar. — Você é um dos meus clientes mais fiéis, já
é cordialidade.
— Obrigado!
— Agradeceu Cérbero rapidamente.
Segurando o saco com a mão esquerda e o rodeando
com a direita, ele começou o ritual.
Aos poucos, raios vermelhos começaram a emanar
das mãos de Cérbero, mas ele apenas continuou realizando o feitiço.
Varis estranhou e se apavorou vagamente, pois
não esperava que o caçador fosse realizar uma magia dentro da loja.
Porém, não estranhou o fato dele conseguir usar
magia. Afinal, ele já tinha se provado ser um sobre-humano suficiente para
conseguir fazer isso, pelo menos em sua visão.
Após cinco segundos, com raios vermelhos lhe
rodeando, uma explosão de fumaça ocorreu internamente no saco.
Cérbero o guardou dentro de uma espécie de
sobretudo negro, que podia ser visto dentro de seu manto vermelho escuro por
segundos quando ele efetuava a ação.
Não demonstrando medo ou desconforto algum, ele
olhou para Varis que estava levemente assustado e, com um sorriso, ele se
aproximou.
— Magia negra. Não gosto muito de usar, mas
quando precisa, abro essas exceções. — O caçador andou para a porta, abrindo e
olhando para a face do ladino que decidiu acompanhá-lo.
Os dois voltaram para a carroça e Cérbero começou
a conduzir o cavalo para o meio de uma zona que era iluminada pelo sol da
cidade.
As lojas começaram a sumir na distância e as casas
surgiram, muitas delas estavam com rachaduras e falhas na parede devido à baixa
estrutura da região que era considerada economicamente inferior a zona que
ficava embaixo da montanha.
Varis olhou para Cérbero de relance e reparou
uma coisa estranha, o caçador aparentava estar sem arma alguma. Nem mesmo uma
espada embainhada, uma adaga, ou um arco improvisado em meio ao manto e
sobretudo.
A única coisa que talvez fosse uma arma era o
conteúdo do saco que havia sido comprado e aplicado magia.
— Você tem alguma arma? — Perguntou Varis, curioso.
— Eu? Não. — Respondeu Cérbero calmamente, como
se não se importasse com Varis ou com suas perguntas.
— Você disse que iríamos matar um demônio... e
vai fazer isso desarmado?
— Exatamente. — Afirmou o caçador, colocando um
sorriso no rosto. — Se você fosse tão forte quanto eu saberia a inutilidade de
uma espada ou de uma adaga.
— Não sabe usar armas?
— Muito pelo contrário. – Ele afirmou sagazmente
com uma vaga risada. – Sou especialista em praticamente todas as armas que
existem, ou quase todas, ainda não parei pra rever isso.
— E não usa nenhuma?
— Minhas mãos já são mais do que o necessário.
— E as coisas que você comprou?
— Eram materiais para fazer uma Pedra Xanon.
— O que?
— É uma pedra que repete tudo o que for falado
para ela.
— E porque isso iria ser útil?
— Você vai ver quando chegarmos à casa que
procuramos.
— Uma outra pergunta, o que eram aqueles raios?
— Não ouviu quando eu disse? Magia negra.
— Mas era vermelha. — Debochou Varis, fazendo
uma piada ruim sobre cores.
— Que engraçado você é. — Ironizou Cérbero de forma vagamente irritada e incomodada. — Magias divinas podem variar de tons de vermelho, amarelo, verde em sua maioria, roxo, rosado, laranja, preto e azul. Magias Negras são majoritariamente vermelhas enquanto Brancas variam de branco e dourado, mesmo que a cor seja só um detalhe pra essas duas...
— Isso não vai adicionar nada para mim, mas enfim.
— respondeu Varis desinteressado. — Magias negras são vermelhas e as brancas
podem não serem brancas.
Após alguns minutos eles pararam.
— Chegamos! — Disse Cérbero, puxando as rédeas do
cavalo e parando em uma casa com o aspecto de abandonada. — O cara que nós
procuramos está aqui dentro.
Varis deu uma breve olhada para a construção
velha que estava caindo aos pedaços, os musgos e a umidade já tinham tomado
conta do lugar a muito tempo e o pouco de madeira que tinha já estava podre.
— Alguém mora aqui? — Perguntou o ladino, desconfiado.
— Morar é uma palavra forte. — Respondeu
Cérbero, ele pulou da carroça para o chão e caminhou lentamente para a porta da
casa. — Eu usaria “se escondendo”, ou “invadido” em um outro contexto.
Varis fez o mesmo e os dois ficaram frente-a-frente
com a porta de pedra que bloqueava seu caminho e impedia sua entrada.
Cérbero limpou a parede do lado da porta tirando
o pó, virando-se de costas e se escorou ali mesmo.
— É agora que você vai ser útil, Varis. — Disse
calmamente o caçador. —Abra a porta.
— Eu? — Perguntou o ladino, confuso.
— Sim, você. Eu sei que você é capaz de abrir
uma fechadura, então faça isso! – Cérbero ordenou diretamente. – Eu
conseguiria abrir, mas precisamos de um sigilo minimo.
Varis aceitou o pedido do caçador e, mesmo com
má vontade, analisou a fechadura da porta que não era a das melhores, mal
chegava a ser boa.
O elfo retirou de sua mochila uma gazua
levemente usada com marcas e arranhões que a tornavam bem feia, mas não a
deformava.
Em alguns minutos a porta foi aberta, causando
um enorme ranger que se espalhou pelo interior da casa ecoando por toda a
estrutura de pedra.
— Correio! — Disse Varis, em tentativa de comédia
após abrir a porta com uma piada.
— Essa foi boa! — Elogiou Cérbero, entrando na
casa, já passando os olhos por todo o interior da residência. – Se quiser pode
esperar aqui, mas eu não recomendo muito, podem te confundir com um ladrão ou
algo assim.
Os móveis de madeira, que pareciam cair ao
primeiro toque de tão podres, decoravam o lugar que estava infestado de teias
de aranha e poeira.
Varis seguiu o caçador que andava atento
a tudo ao seu redor, mas mantendo o sorriso intimidador no rosto como sempre.
Ao passar por um corredor da pequena moradia de
pedra os dois acabaram encontrando um quarto com uma enorme cama de casal e,
jogado em cima dela, um homem que não aparentava ter mais que quarenta anos.
O aspecto morto lhe dominava, ele tremia e
rangia os dentes com extremo pavor e frequência, mesmo sem perceber os “visitantes”.
Sua aura também não era comum, o sentimento que
exalava dele era uma força eletrizante e depressiva, uma
clássica presença demoníaca ínfima.
— Eles estão vindo! — Sussurrou o homem
repetitivas vezes, sem pausas para respirar quase. Em pura esquizofrenia ele
continuou trêmulo e sem se mover bruscamente.
Cérbero olhou aquilo com monotonia, mas manteve
em sua face seu sorriso característico.
Esses tipos de casos eram frequentes, mas ao que aparentava, eles estavam aumentando de ocorrência.
Andando calmamente em direção ao homem, o
caçador ergueu sua mão, já planejando a usar como a origem da magia.
— O senhor é o cara que sobreviveu ao acidente
na vila ao sul a dois dias, certo? — Perguntou o caçador, estendendo o braço e
encostando nas costas do homem.
— Vocês.... Vocês vieram me buscar? – Perguntou
o homem, gaguejando de medo, mas não se virando, em sinal de claro pavor, como se
não quisesse ver o rosto de quem o tocou ou como se a mão de Cérbero tivesse o paralisado
por completo.
— Sim... – Proferiu Cérbero, em dizeres calmos e
suaves.
O homem gritou em desespero.
Rolando seu corpo para a direção contraria e
caindo da cama.
Ao entrar em contato com o chão ele tentou restabelecer
o equilíbrio para se levantar. Logo após conseguir, ele correu mancando
amedrontado para um dos cantos do quarto, onde acabou por bater suas costas
contra a parede.
— ..., mas não somos demônios. — Completou
Cérbero, com tom irônico.
— O que vocês querem? Minha alma? — Gaguejares e
cacoetes dominaram o homem que, mesmo atrapalhado, tentava dialogar.
— Esquizofrênico? — Se perguntou Cérbero, em um
tom de cansaço. — Vai ser difícil de lidar casualmente.
— Saiam daqui! Saiam daqui!
— Eu não queria usar de força bruta ou mágica. —
Ironizou Cérbero, enquanto encarava calmamente o homem. — Mas não sou eu quem
decido o que precisasse usar, não é mesmo?
Os olhos do caçador começam a adquirir um brilho
dourado, coisa essa que inicialmente assustou Varis, que recuou brevemente.
Logo após, o homem, que estava tremendo de medo
e pavor, começou a relaxar, parando de tremer, ficando com as pernas bambas e
os olhos sonolentos.
— Está comunicativo agora? — Perguntou Cérbero, que lentamente perdia o dourado em seus olhos.
— O... O que você fez? — Questionou o homem, tentando voltar a seu estado anterior, mas não conseguindo estimular seu corpo
para isso.
— Você foi amaldiçoado, eu apenas tirei sua
maldição. — Explicou o caçador calmamente. – Considere uma purificação ou
exorcismo improvisado, o que preferir.
— Amaldiçoado?
— Uma das básicas, não se preocupe com isso. Ela
lhe faz ver seu próprio medo como uma espécie de criatura que te persegue, ou
algo do tipo. Os detalhes são irrelevantes. – Cérbero riu vagamente. – Qualquer
um com pouca experiência mágica conseguiria evitá-la.
— Certo, mas onde eu estou? — Perguntou o homem,
adquirindo certa confiança do caçador.
— Há dois dias, relatos de uma vila que tinha
sido invadida por demônios vieram à tona, junto com eles, diversas reclamações de
pessoas que ouviam um cara gritando em uma casa abandonada chegaram. – Cérbero
comentou pensativo. – Eu diria que você saiu de lá correndo e, influenciado
pela maldição, correu uma noite toda até chegar em Monssolus, onde se escondeu
nessa casa abandonada de alguma forma, enfim.
— Uma noite inteira? – O homem assimilou de
forma vaga.
— Em resumo.
— E você veio me tirar dessa maldição?
— Não, eu vim obrigar você a rezar comigo. —
Cérbero se aproximou, retirando o saco que havia comprado anteriormente. — Eu
lhe digo os versos e você apenas repete eles umas cinco ou seis vezes.
— Hum? Mas por que isso? – Questionou o homem, se
assustando com a figura de Cérbero que caminhava lentamente em sua direção com
um sorriso apavorante e os olhos focados em sua face.
O medo tomou conta novamente e seu estado
calmo foi substituído lentamente.
– Ei! Não se aproxime!, não chegue perto! Não!
Não! – Ele suplicou de pavor, perante a figura que foi do vinho para água.
— Eu livrei você da maldição e posso fazer mais
que isso. — Colocando a mão na parede ao lado e recitando uma palavra que não
era compreendida nem por Varis nem homem, Cérbero continuou sua tarefa. — Experit...
A mão rapidamente brilhou em uma aura verde e
formou algo que podia se assemelhar a uma pequena e perfeita esfera de energia,
mas a curta duração do feitiço foi marcada com o mesmo se deformando em ondas e
explodindo levantando a poeira e causando um enorme buraco centralizado na
parede de pedra.
— Essa foi apenas a primeira palavra de uma reza
que se estende por mais quinze. — disse o caçador, exalando seu lado mais
amedrontador e sanguinário. – Cada uma contém um poder que ou aumenta a
intensidade mágica ou reproduz um efeito diferente. Está disposto a cooperar
agora?
— Ce... Cer... Certo! — Respondeu o homem gaguejando
de medo e pavor da figura humanoide tenebrosa de Cérbero.
“Mas que porra! ”. Pensou Varis, enquanto via e
esperava as rezas acabarem. “Ele depende desse cara para matar o demônio,
certo? Então, porquê querer matá-lo? Ele queria só intimidar? Não! Era o
olhar de um assassino, ou um maníaco! Ele sabia exatamente qual olhar fazer,
ele poderia usar a calmaria padrão que usara antes, mas me intimidou com esse
olhar... O que diabos está acontecendo!?”
A mente de Varis sofreu de um pequeno ataque de
pânico, dando-lhe a vontade de fugir do local, mas ao mesmo tempo, ele pensou
que de nada servia.
Um breve desviar de olhar de Cérbero o deixou
apavorado mesmo que sem motivo. Ele não conseguiu discernir se era magia ou algo do tipo, mas era como se seu corpo fosse paralisado ao ponto de não responder, independente da força exercida para qualquer movimento.
Cérbero tirou de seu saco de pano uma pedra
redonda decorada com escrituras e desenhos de múltiplas cores, algo que não
seria possível sem a magia utilizada anteriormente.
Junto disso os outros recursos haviam sumido.
Cérbero disse calmamente os deveres do
homem em um tom baixo e melancólico, que, mesmo em uma sonoridade fraca,
continuava intimidador.
— Repita... Fornastes
protrino demstruio. Cinco vezes.
— Fornastes
protrino demstruio, fornastes protrino demstruio, fornastes protrino demstruio,
fornastes protrino demstruio, fornastes protrino demstruio! — O homem
desesperado seguiu as ordens de Cérbero, forçando seu corpo ao máximo para não
gaguejar, sentindo o caçador próximo. Uma aura que o danificava internamente
começou a pinicar seus ossos e nervos, causando-lhe mais nervosismo.
Cérbero aumentou seu sorriso e guardou a pedra
dentro do saco, fazendo o brilho dourado em seus olhos retornar. As pálpebras
do homem se cansaram aos poucos e em menos de um segundo, ele já havia caído de
sono no piso frio da casa.
— Vamos! — Afirmou Cérbero, aparentando ter
voltado a sua postura normal e direcionando sua palavra a Varis enquanto saia
da casa.
— O que você fez? — Perguntou Varis, ao recuperar
o controle do corpo, se virando para a saída e seguindo Cérbero, vendo-o já
pegar a rédeas do cavalo.
— Hum? — Murmurou Cérbero, não entendendo o
questionamento feito pelo ladino. — Aquilo? Só o coloquei para dormir.
— Isso eu percebi. — Resmungou Varis, enquanto
entrava na carroça.
— Então por que perguntou? — ironizou Cérbero.
— Eu quis perguntar o que você fez quando explodiu
a parede? — Respondeu Varis, levemente assustado e receoso.
— Ah, isso. Só queria colocar medo nele. – Respondeu o caçador, conduzindo a carroça para o portão da cidade. – É mais
eficiente você ameaçar alguém do que perder tempo dialogando, não acha?
Varis se sentiu ainda mais intimidado.
Aquele olhar que era reproduzido pelo caçador,
aquele maldito olhar.
Suas memórias lhe traziam frieza, ele sentia os
toques em seu corpo e as marcas das chibatadas se abrindo novamente, em meio ao
aperto mágico em seu coração que havia perdido a tempos.
Ele ficou ofegante e angustiado, se controlando
para não avançar em Cérbero, mesmo sabendo que era quase que a morte certa, ele
se pôs a contrariá-lo.
— Colocar medo?! — Gritou Varis em um grito de
desespero. — Você ia matá-lo!
O silêncio tomou conta da rua que eles estavam.
Tanto os guardas quanto as pessoas direcionaram sua atenção para a carroça dos
dois.
Cérbero viu com clareza todos a sua volta em questão de segundos. Todos dali não iriam deixá-los em paz e, se algo fosse falado para algum dos guardas, ele arrumaria problemas com a corte de Civitas e Artrit, então não lhe sobrou muitas opções ou magias rápidas suficientes, apenas um de seus últimos recursos.