Cérbero
esperava que tamanho feitiço não precisasse ser usado novamente, e que o ser
que usava aquilo já tivesse “morrido” a tempos.
Porém, suas falhas e ações ocasionaram aquilo
novamente, sua irresponsabilidade se tornou novamente um motivo de um deslize
que devia ser consertado. E o mesmo temia que aquilo iniciasse mais um ciclo
secundário em sua vida que deverá, assim como todos, ser encarado como a morte.
Seus olhos se abriram lentamente e deles uma
pulsação de aura vermelha emanava no lugar tendo como origem sua pessoa.
O efeito dessa magia não era entendido por
ninguém. Não os deixava mais calmos, não os fazia parar de se mover, mas foi com o aumento da potência que tudo começou.
Aos poucos, todos em sua volta começaram a
desvirtuar-se de seus conceitos. Tanto o pavor do grito de Varis, quanto até
mesmo a direção em que andavam foram completamente embaralhadas como uma perca
de memória instantânea.
Em meio aquilo tudo, apenas os dois permaneceram
em uma frequência original. Tanto que, Varis até mesmo estranhou uma espécie de
fumaça subliminar que estava sendo espalhada pelo local.
Tal fumaça parecia evitar Cérbero como se uma
bola de ar tivesse o protegendo – junto nessa bola de ar, Varis se protegia
inconscientemente.
Quando Cérbero se virou para Varis, a fumaça já
havia sessado naquele ponto.
O ladino teve um medo superior ao que sentiu no
olhar que viu antes. O rosto do caçador era moldado em puro ódio e dor,
emanando uma tonalidade vermelha fraca, algo que o ladino achou que fosse apenas
de sua mente
Ele olhou friamente para Varis, pensando em
contrariá-lo, mas o mesmo sabia que parte da culpa era sua.
— Não chame a atenção em um momento assim. — Reclamou Cérbero, desfazendo sua cara amedrontadora e voltando para o controle
da carroça. – Espere para quando pudermos resolver as coisas na base da
violência.
— Certo... — Varis não conseguiu descrever seu
medo, seu coração pulsava tanto que parecia próximo de explodir. Em seguida
ele caiu para trás de nervosismo em um quase desmaio.
— Aquele cara não era um simples morador dessa
cidade. — Cérbero começou a explicar. — Há dois dias uma vila foi atacada por
demônios, como eu tinha dito, mas nesse caso, para o ataque ter acontecido,
alguém quebrou o selo de um dos demônios que a atacou.
— “Selo”?
— É só uma denominação para uma espécie de vínculo que um ser ligado a demônios vigias, mas não é exclusivo deles. Uma lembrança, uma vergonha, um segredo, tanto faz, algo de relevante para o demônio, que se quebrado pode deixá-lo extremamente arisco o deixando com vontade de atacar todo mundo.
— Uma lembrança?
— Presta atenção! Não vou lhe explicar tudo, tenho
coisa melhor para fazer! — Reclamou o caçador, impaciente. — Enfim, aquele homem
quebrou este “selo”, o que ocasionou numa maldição. Após isso ele correu para
cá invadindo uma casa abandonada e se escondeu nela.
— O que foi que ele quebrou?
— Sei lá. — Cérbero desviou sua visão brevemente
para uma igreja que ficava na rota que o caçador havia traçado para a saída de
Monssolus. – Diferentes demônios possuem diferentes selos, normalmente apenas
os demônios de nível três para cima tem tal capacidade cerebral para discernir
esse tipo de coisa, tendo tal limitação, demônios com selos tendem a ser mais
fortes.
Varis reparou que o foco de Cérbero havia sido
tomado por um padre com um crucifixo de madeira, que gritava e orava frente a
uma movimentada catedral de pedra que se destacava pela sua arquitetura gótica
diferente das casas ao redor.
— A gente vai precisar de algo santo para isso? — Perguntou Varis, brevemente.
— Não... — Respondeu o caçador pensativo —....
Apenas estava pensando em algo.
— E o que era?
— Nada não.
A conversa dos dois se encerrou com Varis
decidindo ignorar Cérbero e se estabilizar de todos os modos.
Trilhando um caminho que demorou horas para
terminar, eles continuaram a viajem.
Ao pôr do sol, a carroça parou em um campo verde
que antecedia a vila que havia sido atacada por demônios. Ao sair calmamente da
carroça, Cérbero percebeu que Varis já havia dormido, provavelmente por causa dos eventos
anteriores.
Ele refletiu sobre o olhar que fez e pensou que Varis supostamente sofreu com o feitiço utilizado anteriormente. Logo, ele
deu a colher de chá de um descanso para o ladino.
Com um breve suspiro, o caçador retirou de seu
bolso o saco com a pedra e o jogou para o alto, pegando logo em seguida.
— Espero que esse seja mais forte do que os
anteriores. — Disse Cérbero, com um tom cansado e entediado, desfazendo
vagamente o sorriso e assumindo uma feição neutra.
Ele andou calmamente pelos campos, que já haviam
perdido seu brilho e a cor verde clara do amanhecer. Eles ganharam um tom verde
musgo, os ventos deixavam de enfeitar as planícies e começavam a causar frio a
quem trilhasse aqueles caminhos.
Mesmo com a atmosfera assustadora, Cérbero continuou
friamente calmo em direção a pequena vila que supostamente estava abandonada.
As casas de dois andares feitas de madeira velha
com poucos detalhes de pedra se tornavam parte de um lugar completamente
amaldiçoado, que era calmamente cruzado pelo caçador que percebeu a leve
alteração espiritual no lugar.
O sentimento de peso na consciência, semelhante ao que se tinha ao usar um objeto mágico, era sentido naturalmente
ao trilhar as ruas da pequena vila. Porém, aquele era algo mais depressivo e
agoniante.
Cérbero não demonstrou medo ou angústia, pelo
contrário, o caçador parecia entediado e despreocupado com tudo ao seu redor.
Após alguns minutos trilhando o caminho pelas
construções abandonadas, Cérbero percebeu o que havia no lugar. Os fatos se
encaixavam na cabeça do homem, que decidiu parar para refletir.
“Maldição: é desenvolvido o suficiente para usar
magia, supostamente nível quatro” começou a listar Cérbero, analisando minuciosamente
seus arredores. “Deixou um vivo... talvez um deslize, mas pode ter sido um
aviso ou uma limitação de área que ele pode percorrer”.
Seus olhos percorreram a região, procurando
qualquer coisa, seja ela um vulto, animal ou pessoa.
“Magia facilmente removida: não deve estar em
sua forma máxima, ou é apenas um dos fracos, provavelmente não é uma espécie de
finta. Não deixou marcas de sangue ou corpos espalhados, aproveitando cem por
cento de suas vítimas, ele pode ficar mais forte se continuar consumindo
corpos...” Cérbero fungou profundamente, sentindo o cheiro de terra, poeira e
um aroma podre altamente suspeito. “Está fraco sem dúvida. Ele sabe que eu
estou aqui, não preciso deixar mais aparente só esperá-lo... ou atrai-lo”.
Com um deslize proposital o caçador deixou a
pedra cair no chão.
Com um segundo movimento básico e lento, ele se
abaixou para pegá-la, mas em outra ação que possuía uma velocidade sem tamanho,
o caçador afundou sua mão na terra e recitou uma oração rápida, após guardar a
pedra com a outra mão.
— Experit
Demstruio Malternos...
A mão direita, que antes estava afundada na
terra, agora emanava um forte brilho verde, se espalhando por uma área
extremamente grande, imensamente maior que a parede que servira de alvo
anteriormente – algo em torno de quinze metros.
Novamente, a esfera de ar anulava a participação
de Cérbero na área afetada pela magia.
Após alguns milissegundos, a área verde que
havia sido criada por Cérbero explodiu, criando uma gigantesca cratera no chão, que danificou parcialmente as casas em sua volta e pouquíssimo de seu manto e
sobretudo.
A alteração feita no solo revelou uma enorme
cauda negra, que se assemelhava a de um lagarto ou a o corpo de uma cobra.
Ao sentir o frio do ar da superfície, que era
diferente do calor que estava quando soterrada, a cauda se retraiu como uma
sanfona, alterando seu tamanho de uma forma inconsistente – hora ficando grande
ao ponto de se expandir para fora da terra, hora tão pequena que era
imperceptível – e começou a percorrer o chão, deixando um rastro de buracos no
solo.
Cérbero correu por esse rastro que teve seu fim
em uma casa que, em comparação às outras, era muito grande.
“Tinha como segundo palpite que ele estava em
uma dessas casas” pensou o caçador com audácia e ironia, enquanto corria atrás
dos rastros no solo.
Movimentos frios o conduziram até a localização
do demônio. As mãos frias de Cérbero encostaram na parede da casa suavemente,
provocando um leve ranger na madeira.
— Experit
Demstruio... — Recitou Cérbero calmamente, depositando mais energia que o
normal em suas palmas com o intuito de espalhar a aura ao invés de concentrá-la
como anteriormente.
A energia verde cobriu a parede e em seguida a
deixou instável.
Fortemente eliminada por uma explosão, a
destruição das paredes revelou uma criatura que não era vista por Cérbero a tempos.
Um ser esguio e esquelético que possuía quinze
metros de tamanho, contraída em uma estrutura de cinco, curvado de forma
corcunda e completamente deplorável com uma pele de escamas secas semelhante as
de cobras mortas, inclusive com escamas velhas que estavam sobrepondo algumas
partes de carne podre.
Putrefato, o ser
também possuía falhas em sua carapaça, com ossos a atravessando e a cortando em
momentos de respirar e inspirar.
Sua fisionomia se assemelhava a um lagarto, mas
suas patas dianteiras, além de possuírem juntas – assim como cotovelos –
deixava-o com a postura mais atrofiada e aparentando cair a cada segundo.
Para finalizar e concluir a análise do caçador, ele viu se escondendo em suas costas, grandes asas cinzas rasgadas, cortadas e
esburacadas.
Aquele ser podre, que mais aparentava ser um
cadáver vivo, era claramente um dragão, ou algum derivado draconiano.
Cérbero estava surpreso, suas experiências
anteriores já fizeram-lhe acreditar que todos que possuíam ligação draconiana
haviam morrido, quase que uma certeza que nas Américas não havia nenhum
espécime do tipo.
O panteão
diacrônico era constituído de dois irmãos: Drákollum e Drákomati, ambos eram
considerados dragões Deuses e dividiam um planeta único. Eles foram
responsáveis pela criação de cada draconiano vivo, junto das ramificações de
raças como draconatos.
Enquanto Drákomati criara diferentes tipos de dragões como os sem patas dianteiras – Wyvern
–, dragões sem patas – Wyrm – e outras variações de dragões normais, Drákollum
os evoluíam, tornando deles seres pensantes e sábios.
A medida que o tempo passou, foram surgindo os draconatos, dragões humanoides de tamanhos menores.
Após os anos mil, draconianos foram caçados por sua carapaça e ossos que eram
materiais extremamente cobiçados. Supostamente o último dragão registrado fora
morto por uma balestra, enquanto tentava encontrar uma tribo de draconatos que
nunca tinha sido encontrada, dando-se como morta posteriormente.
“Não existem demônios dragões”. Pensou Cérbero, revisando cada espécie
demoníaca que sua vasta galeria mental possuía, em questão de segundos. “A única
teoria que posso tirar, além de uma ilusão ou transmutação de alto nível... Um
Priscar possuindo alguém de origem draconiana! ”.
A mente
do caçador clareou vagamente, enquanto a estratégia era montada.
Priscar’s, demônios de nível cinco, mas que intercalavam no quesito
dependendo da dieta seguida. Eles eram conhecidos por parasitarem outros seres
vivos, conseguindo modificar suas vítimas a níveis moleculares e genéticos
baseando em detalhes de raça, boa parte das vezes retrocedendo-as na escala
evolutiva.
Porém, os
mesmos necessitavam de múltiplas vítimas para evoluir em uma escala de ameaça.
Para chegarem no nível de demônio maior e apresentar uma real ameaça, eles
necessitavam devorar carne, ossos, almas e principalmente pecados, aos
montes.
O mesmo,
sendo um demônio maior, poderia fazer coisas anormais como ocultar presença ou
infectar múltiplos alvos simultaneamente.
O caçador viu lentamente o ser morto abrir os
olhos sem alma do dragão.
Cérbero, apesar da teoria de que o ser estava
morto, conseguiu sentir e ver algo vivo naquilo. Sua mente começou a formular
teorias enquanto o combate acontecia.
O ser de pescoço longo e dentes podres com
metade do crânio exposto baforou uma forte onda de um fogo escarlate contra
Cérbero.
As labaredas mágicas chegaram a meio metro de Cérbero,
mas elas simplesmente foram refletidas para os lados pela esfera de vento que o
protegia. O mesmo viu como se não fosse nada, afinal estava acostumado a isso e
se preparava para atacar.
Os olhos de Cérbero, ainda impressionados com a
existência do dragão, percebendo o fogo saindo dos buracos em seu tórax e o
barulho do emanar das chamas se misturando com um grito de dor, como se ele
estivesse sofrendo com os movimentos.
Momentos antes do inimigo o atacar novamente,
Cérbero abriu seu punho, formando uma espécie de escudo redemoinho que tapou
sua cara e absorveu o fogo como um buraco negro em miniatura.
As poucas chamas que não eram sugadas por
Cerbero, mancharam vagamente o chão do lugar e as que emanavam do tórax do
dragão começaram a queimar lentamente a casa.
— Não foi tão forte, você está em um estado
muito fraco ainda. – Refletiu Cérbero, falando consigo mesmo, enquanto manipulava
as chamas absorvidas. – Mesmo consumindo uma vila de umas trinta pessoas você
não aparenta nem ao menos ter poder para se mover, mal para atacar, talvez
tenha escolhido um portador além de sua capacidade ou achou que ia conseguir
mais pessoas com o tempo, não achando que ia achar uma ameaça a altura.
O caçador fechou o punho, transformando as
chamas em um emanar de luz branca, que se revelou vagamente uma esfera de
fogo dourada e pequena, dessa vez completamente estável e reluzente, sem dúvida
uma das magias brancas das mais puras possível.
A pequena chama foi jogada e, à medida que se
aproximava do dragão, ela ia crescendo cada vez mais – chegando ao ponto de
ficar do tamanho de Cérbero.
A esfera atingiu o que seria o abdômen do
dragão, queimando a pele podre com queimaduras reluzentes de graus extremos.
Com a abertura momentânea causada pela chama,
Cérbero percebeu que, em seu interior, atrás de uma espécie de jaula feita de
ossos grossos, nervos, veias e órgãos, no lugar em que deveria estar o seu
coração, um vulto vermelho humanoide.
O ferimento se regenerou rapidamente, mas a
certeza de que possuía algo lá era concreta.
O espanto era notório no rosto de Cérbero, que esbanjou um grande e assustador sorriso, mas por dentro ele havia
traçado um novo objetivo: exorcizar o demônio e salvar o que estivesse dentro,
não só eliminá-lo normalmente.
A pedra foi retirada cuidadosamente e em seguida,
erguida pelo caçador que a segurava, liberando uma quantidade de poder
surrealmente grande na mesma.
A pedra começou a repetir os dizeres do homem,
que antes havia orado junto de Cérbero como um gravador.
Raios verdes circularam o punho de Cérbero, que
se mantinha firme, usando sua mão como catalisador para a invocação de uma arma
mágica, ele se pôs em posição de ataque.
Uma lança de luz se moldou da pedra em meio as
orações gravadas. Feita de trovões e eletricidade esverdeada, a arma mágica era
levemente menor que o caçador.
Cérbero a manejou com cuidado, pois sabia que,
igual a todas suas magias divinas, essa também poderia vir a explodir devido a
sua fé controversa.
O poder sagrado concentrado entre os dedos do
caçador era suficiente para espantar completamente a aura demoníaca que
assombrava o lugar, mostrando tamanha a quantidade de energia depositada como
uma espécie de emanar de vento involuntário.
A lança em certos momentos parecia que iria
transbordar de energia. Isso alertava Cérbero do quanto tempo ele ainda tinha
para manter o feitiço.
O caçador fechou seu olho esquerdo e direcionou
o foco de seu direito para três centímetros acima de onde ele achava ter visto
a cabeça do vulto vermelho.
O braço tapado pela capa e sobretudo vermelho
escuro deixavam um pouco de sua armadura escapar, mas aquilo ainda cobria
principalmente seu enorme braço que esbanjava veias saltando.
A ação de arremesso durou dois segundos. O braço
do caçador havia jogado a lança que perfurou o peito do dragão em uma
velocidade sem tamanho e, por pouco, não atingiu o ser que havia dentro do
esqueleto vivo da fera.