Quando lhe foi proporcionado a passagem pela
lança, o caçador já havia adentrado o esqueleto do inimigo e visualizado o que
era o vulto.
Dois metros e trinta, pele escamosa, músculos surreais e
características draconianas. Aquilo poderia ser o último draconato vivo na
cabeça do caçador.
Surpreso e confiante, Cérbero pôs a mão no peito do draconato, enquanto
era preso pelos ossos da criatura que se regenerava, a energia branca começou a
emanar de suas palmas e o exorcismo teve início.
— Grande e glorioso príncipe dos
exércitos celestes, São Miguel Arcanjo, defendei-nos. — A oração do caçador
envolveu uma aura sem tamanho em sua mão no mais puro exorcismo que conseguiu
fazer, como se aquilo fosse uma oração de magia máxima em seu meio.
A oração, logo no início foi cessada, pois o caçador percebeu que já
havia reunido energia suficiente.
A aura branca começou a penetrar o espírito do draconato instantaneamente, isso resultou na lenta queima do esqueleto zumbi do dragão, que se desfazia em um fogo dourado mesclado com chamas vermelhas, que consumiam a estrutura de madeira da casa que estava cedendo por completo.
Cérbero rapidamente checou o estado do draconato que não estava
consciente, mas estava vivo.
Mas mesmo com o forte exorcismo, a vida útil daquele Priscar não tinha
acabado.
Reduzido a uma espécie de verruga viva, o demônio escapou por um golpe
de sorte do destino.
Cortando ligações com seu corpo que se desfazia, ele foi reduzido a
um demônio de nível um. Rastejando pelos
túneis que havia feito embaixo da vila, ele se moveu o máximo que conseguiu,
gastando seus últimos recursos mágicos para esconder sua presença demoníaca.
Saindo por um pequeno túnel e se deparando com uma carroça. Com muito
esforço, o demônio rastejou até ela, quase perdendo todas suas forças. Ao ouvir
um leve ronco, ele percebeu que havia alguém no veículo e, gastando seus últimos
esforços, ele se movimentou rapidamente, aplicando um bote sagaz.
A cobertura leve da carroça e a armadura de couro de Varis não conseguiram
bloquear o demônio que se projetou contra ele, o penetrando ao mesmo tempo que
anestesiava o local do ataque, tornando sua infiltração imperceptível para um ser
comum como Varis.
O ladino acordou, se levantando em posição de ataque. Decidindo sair da
carroça para verificar onde estava, ele viu, no caminho de terra, uma vila destruída com as poucas casas queimando ao horizonte.
Os olhos do ladino se inquietaram por um breve momento e entraram em
estado de confusão logo em seguida.
Voltando do meio da destruição,
Cérbero estava levando o draconato nos ombros quando visualizou Varis “admirando a
paisagem”.
— Ei, inútil! — Gritou o caçador, em um tom de leve cansaço. — Vem aqui e
me ajude!
Varis reconheceu a figura de Cérbero e se apavorou ao ver o draconato.
Nunca havia visto nada sobre a cultura draconiana, mal sabia de sua existência.
Ver um gigantesco homem com pele de lagarto ainda vivo em sua frente, lhe dava
um certo medo, mesmo não sabendo dizer do que era.
Mesmo com medo e receio, o ladino o ajudou e os dois colocaram o draconato dentro da carroça, onde lá ele repousou
calmamente até chegar em Civitas.
A noite chegou não só nos arredores de Civitas, mas também em Kranbar
onde lá Edward e Parysas descarregaram caixas de comida em um orfanato.
A pequena vila que antecedia o forte era a coisa mais básica da região,
poucas casas de baixa estrutura e com poucos moradores, mas estranhamente
nenhum deles reclamava de uma fraca qualidade de vida, pelo contrário, todos
estavam felizes com o que tinham e agradeciam por isso.
Os paladinos saíram do forte ainda ao pôr do sol. Edward estava carregando uma caixa de suprimentos relativamente pesada. Já Parysas, esbanjava
esforço físico e levava duas empilhadas.
Ao chegar da noite, o orfanato da pequena vila recebia eles com um
sorriso por parte das crianças que lá moravam, todos reconheciam a figura
sorridente de cabelos brancos de Parysas, que logo foi derrubado por abraços
dos órfãos do lugar.
Edward observou tudo com um sorriso no rosto e um cansaço nos braços,
mas mesmo assim, não conseguiu esconder seu desânimo por estar junto de tantas
crianças que o fazem lembrar de sua falecida filha.
O paladino se virou para a porta visando sair do dormitório que estava,
mas foi interrompido.
— Quem é aquele? — Perguntou uma das crianças, que deixou de abraçar
Parysas por um breve momento, apontando seu dedo para Edward.
— Ele? — Disse Parysas, se levantando aos poucos e se aproximando do
amigo. — Ele é o mais novo paladino do reino.
As crianças ficam encantadas com as palavras do paladino real, que sorria
como uma forma de melhorar a imagem do amigo.
— Então quer dizer que ele é igual a você? — Perguntou uma das crianças, que observava a armadura reluzente de Edward.
— Infelizmente, ainda não... — Respondeu o elfo negro, tentando entrar um
pouco no clima, mas não conseguindo.
Parysas notou vagamente o desconforto do amigo e logo lembrou de sua
história, sua mente começou a se preocupar um pouco e o sentimento de vergonha tomou
conta dele. Aos poucos, Parysas desmoronava moralmente tomando as dores de
Edward para si.
Tudo que ele mais desejava era que aquilo acabasse com os dois indo para
o forte, mas uma criança o interrompeu.
— Ei senhor... — Perguntou uma pequena garota.
Ao olhar para o lado, Edward reconheceu a origem da voz e quase desmoronou.
Aparentava ter quatro anos no mínimo e sete no máximo. Uma pele clara e
olhos castanhos igual seu cabelo que se estendia até seu pescoço, em um estilo
parecido com um cogumelo, ele escondia parte de seu rosto.
– O senhor pode me adotar? – Ela perguntou sem jeito e com vergonha, mas
ao mesmo tempo, de forma genuinamente inocente e pura.
Foi nesse pequeno momento de conversa, que a dor consumiu o espirito de
Edward de uma forma que ele nunca tinha sentido antes.
Talvez seja pelo delírio interno, pelo trauma ou por efeitos externos e
momentâneos, mas ao olhar para a figura da criança humana, ele viu exatamente a
face de sua falecida filha.
Quase caindo de remorso e se ajoelhando, Edward interpretou aquela
criança em sua frente como uma espécie de recomeço que o destino estava lhe dando.
Após a dor insuportável, ele viu rapidamente uma chance de tudo
recomeçar, mesmo com uma criança que não compartilhasse o seu sangue, ele viu
na pequena órfã humana uma espécie de chama verde de esperança.
Uma coincidência do destino ou um feito de sorte lhe proporcionado por
Tac Nyan, ele não conseguia parar de fazer sua mente parar de pensar nessa nova possibilidade.
Mas o mesmo não podia negar a frieza de ignorar que já possuíra uma
filha e que ela atualmente estava morta, mas sua melancolia se misturou com seu
subconsciente o colocando nesse emaranhado mental.
— Crist! — Reclamou Parysas, reparando a confusão de pensamentos e sentimentos
do colega. — Não é assim que você pede.
As lágrimas escorreram lentamente no rosto de Edward, que se virou e tentou
disfarçar o choro, mesmo não conseguindo. Sem proferir mais nada, ele saiu do
local. Logo em seguida, Parysas o seguiu preocupado, já cogitando usar de magias
para acalmá-lo emocionalmente.
— Eu não deveria ter trazido você. — Disse Parysas com arrependimento, sua dor
era perceptível tanto em suas palavras, quanto em seu humor cabisbaixo. — Não
pensei que isso fosse acontecer... mas deveria, foi um completo erro de minha
parte, desculpa, eu falhei como pessoa e como possível amigo seu. Só, peço que me desculpe.
— Não tem problema. — Interrompeu Edward, engolido o choro e se agarrando
no fio de esperança que visualizou naquele momento. Aquilo conseguiu fazer com
que sua postura fosse ajeitada aos poucos, junto de suas lágrimas que cessaram
vagamente.
— Como? — Perguntou Parysas, confuso.
— Anos atrás eu perdi minha filha, agora é minha chance de me
reconciliar com meu passado, eu acho. – Edward afirmou, depois de tomar fôlego para se
recompôr. Ao mesmo tempo, ele não conseguia explicar os reais pensamentos que
lhe rodeavam, seu discurso se tornava maior.
— Perdão, mas eu ainda não entendi.
— Aquela criança que pediu para que eu a adotasse, quem ela era?
— Ah, a Crist. – Parysas lembrou vagamente dos acontecimentos que
rodeavam aquela criança. – Ela era filha de um soldado que morreu por causa de uma doença e a
mãe morreu logo em seguida. Salvei ela e a coloquei para a adoção junto de alguns
outros a certo tempo, venho visitar essas crianças quase diariamente a alguns
anos.
— Ela é idêntica à minha filha. — Afirmou Edward, trêmulo e receoso.
– Como? – Parysas questionou.
– Mesmo achando que seja uma ilusão da minha mente, ela era incrivelmente
semelhante, claro se ignorar o fato das raças serem diferentes. – Edward afirmou, tremendo um pouco, ele parou de caminhar, fazendo Parysas também parar para encará-lo
vagamente. – Parysas, eu posso a adotar?
A confusão e a mescla de sentimentos era tanta, que Parysas parecia ter
desligado completamente os sentidos e se pôs apenas a pensar sobre, não
chegando a lugar algum.
— Bem... — O paladino real não
conseguiu assimilar uma contra resposta. – Porque acha isso?
— Já estou quase com trinta anos meu amigo. — Começou a explicar Edward, com um leve tom depressivo. — Mesmo com o trauma da morte de minha filha e
esposa devo seguir em frente, sei que irei viver mais que ela por ser um elfo,
mas quero que pelo menos alguém seja feliz por minha causa, por mais egoísta
que esse desejo seja.
Parysas sorriu como resposta, mas era visível que esse sorriso era
diferente. A energia que ele emanava era algo mais pacífica e motivadora do que
os meros dentes contemplativos que ele exercia naturalmente.
— Acho que terei que fazer uma papelada de adoção então. – Afirmou
Parysas, abrindo um sorriso na face pensativa do paladino.
Entre pensamentos e devaneios, os dois chegaram ao forte de Kranbar, onde foram chamados imediatamente para auxiliar Cérbero.
A chegada da carroça foi sucedida por avisos que atravessaram o forte por
meio dos guardas.
Em questão de minutos, Sansa e Volten foram acionados, Parysas e Edward também foram avisados sobre a nova descoberta de Cérbero.
Rodeando a carroça que estava no estábulo interno do forte, além das
seis figuras, Argel e seus guardas também o observavam com extremo medo
e receio, todos prontos para qualquer reação.
– Ele... ele está vivo? – Perguntou Parysas, dando poucos passos na direção do caçador, que estava abrindo espaço na carroça para uma melhor visão do draconato.
– Pelo que ele disse. – Varis pulou para perto do paladino real, andando
para suas costas e se virando novamente para o foco de todos, parando apenas
quando encostou seu ombro na armadura metálica de Edward.
– O que aconteceu? – Ele perguntou curioso e receoso, assim como todos
no local.
– Acho que você vai descobrir depois. – Afirmou o ladino, evitando
conversas. – Quando o Cérbero falar, você ouvirá mesmo.
– Cérbero? – Questionou o paladino, dando uma segunda olhada na figura
coberta pelo manto vermelho que estava cuidando do homem dragão. – Então é ele.
– Hum?
– Sansa! – Gritou Cérbero, chamando atenção da maga.
– Sim, sim, já sei o que fazer... – A
garota subiu delicadamente na carroça, enquanto ficou lado-a-lado com o caçador
e de frente com o draconato. – Ele está vivo?
– Só inconsciente.
– Ferimentos?
– Duas costelas, punho direito, mandíbula vagamente deslocada e chuto
que ainda está sobre os efeitos da possessão, considere uma exaustão e perda de
sangue. – Cérbero apontou com seu indicador as partes do corpo do ser. – Pelo
menos no que eu observei.
– Entendeu alguma coisa? – Cochichou Edward. não compreendendo os nomes
complexos ditos por Cérbero.
– O que você acha. – Varis, respondeu de forma desleixada.
A maioria das pessoas nascidas e criadas em lugares pobres não sabiam
nem os nomes dos próprios ossos. Pessoas que nasceram camponesas dificilmente
tinham acesso a tal informação como era o caso de Edward.
Para médicos, o conhecimento da área era essencial. Junto deles,
caçadores e assassinos experientes dedicavam parte de seu treinamento para
decorar anatomia com o intuito de facilitar o abate rápido ou esfolamento.
– São ossos. – Afirmou Voltten, se aproximando dos dois, também mantendo
o tom de voz baixo. – Diversos curandeiros e sacerdotes pelas regiões do mundo
criaram nomes e padrões para facilitar as operações. Você tendo o nome exato do
osso em questão fica mais fácil teorizar como curá-lo, até mesmo sem magia.
– Compreendo... – Afirmou Edward calmamente, enquanto desviava o olhar.
– Ele está acordando! – O grito veio de um guarda que, após ver alguns
movimentos do draconato, alertou a todos com pavor.
Todos entraram em postura de luta e Argel se afastou vagamente.
Edward e Varis sacaram suas armas, Varis uma adaga e espada e Edward
espada e escudo, Voltten recuou, ficando atrás dos companheiros.
Uma série de tosses vieram, tendo como origem o draconato.
Sansa manuseou seu cajado nas áreas que estavam feridas calmamente, enquanto Cérbero levantava com seu braço dominante a cabeça do ser.
Os olhos secos e escamosos se abriram, dando a visão a duas pupilas amarelas
douradas mescladas com um vermelho, semelhantes aos olhos de lagartos.
– Onde... estar? – A voz grossa do draconato parecia a de um ser que
escondia sua fúria, se forçando a parecer calmo, mas ao mesmo tempo ele não
parecia com raiva.
– Ele fala nossa língua? – Perguntou Parysas, assustado, mas não sacando
armas ou invocando presenças mágicas, mantendo-se de guarda baixa
propositalmente.
– Apliquei uma magia tradutora. – Afirmou Cérbero, analisando a face do draconato. – A linguagem draconiana é bem rudimentar, os verbos vão ser
conjugados errados e talvez algumas coisas não façam sentido, mas paciência, com o tempo, ele vai melhorar.
– Regression Cure. – Sansa
proferiu, terminando a trajetória de seu cajado no peito do draconato, fazendo-o
urrar e espumar pela boca por alguns segundos. – Os ferimentos eram em parte
leves, mas ele não pode fazer muito, é provável que ele estava sendo deformado
aos poucos.
– Consegue se levantar? – Perguntou Cérbero, adicionando uma vaga e
pequena energia curativa na palma de suas mãos.
– Sim... conseguir. – O draconato se impulsionou e levantou lentamente,
saindo da carroça e pisando no chão com seus pés descalços.
– Sinto que também tenha dúvidas, mas espero que aceite nossa ajuda. –
Argel se aproximou, mas se escondendo atrás de Parysas por segurança.
– Eu... aceitar... – Ele disse confusamente, perdendo-se em suas
próprias memórias ao falar e não conseguindo se mover corretamente.
– Melhor não forçarmos, ele deve estar mal pela possessão. – Afirmou
Cérbero, saltando da carroça, ele cochichou para Argel.
– Ah, por favor, diga-me, qual o seu nome. – Argel assentiu para o caçador e continuou a tentar dialogar com o draconato de forma pacifica.
– Eu? – Ele questionou, tomando a consciência vaga dos dizeres ao seu
redor. – Meu nome ser Glans.
– Glans, certo. – Argel afirmou, trocando olhares vagos com Parysas. –
Aceita descansar em nosso humilde forte enquanto se recupera?
– Ah... aceitar...
– Certo. – Argel virou o rosto para Parysas e se aproximou. – O
quarto dos recrutas consegue caber mais uma cama, ajuste o lugar.
– Ei! Vamos ter que dormir ao lado dele? – Varis questionou em um quase
grito.
– Algum problema? – Argel questionou, tendo como apoio argumentativo
Parysas exibindo uma das seis espadas e Sansa descendo da carroça de forma
oculta.
– Nenhum... – Ele afirmou, se contendo e rangendo silenciosamente os
dentes.
– Ótimo, façam as preparações finais do jantar de hoje, até o fim do dia
você já terá uma cama, Glans.
– Obrigado. – Ele falou de forma confusa, mas consciente e agradecida.
– Não se acanhe,
logo lhe daremos uma roupa, mas discutiremos isso com o tempo. – Olhando em volta e vendo todos os soldados focando em si e com Cérbero dando-lhe as costas, Argel
pronunciou. – Voltem a seus postos, não tem mais nada para ver aqui.