O sol se pôs lentamente, marcando o final do
dia.
As pessoas da vila agora estavam abrigadas no
castelo em lugares totalmente improvisados até as casas fossem reconstruídas.
Diversos guardas foram enviados para vigiar cada
canto da imensa construção de pedra, para evitar que demônios a invadam. Junto
deles, Cérbero – que agora gastava parte de suas energias em uma aura que
cobria o forte em uma camada de magia invisível – zanzava pelas salas sem
muitas expectativas.
Ao final do dia, os quatro soldados especiais foram chamados para a sala do trono com a alegação de que o rei queria falar com eles
para algo mais alarmante. A brisa fria
que passava pelas janelas de trás do trono real amedrontava os quatro, que sentiam
um frio em suas espinhas.
Ao entrarem, eles viram o maior ato de
desrespeito possível para qualquer reino.
Em meio as escadarias, cortinas, tochas,
candelabros e decorações, estava lá Cérbero, deitado no trono real em uma
posição confortável.
O caçador parecia bem-disposto a qualquer coisa,
como se estivesse deitado lá apenas para desrespeitar os que consideravam
aquilo um tabu por conta da hierarquia do reino.
Sua cabeça descansava encostada em um dos apoios
de braço, enquanto seus pés estavam esticados no ar, tudo enquanto o mesmo fazia
ilusões básicas com as mãos – como fazer uma nuvem chover ou um show de sombras
– para se distrair.
Com um breve bocejo do caçador, o estopim para
Edward foi atingido, transbordando de incômodo ao mesmo tempo que se sentia
humilhado e ofendido, perante o homem que estava ridicularizando o lugar que
havia lhe acolhido como paladino e lhe deu uma segunda chance de seguir a
vida.
— Senhor Cérbero, por favor saia do trono real.
— Pediu Edward, se segurando para não gritar de tanta indignação.
— Hum? — Cérbero virou o rosto
lentamente para o paladino, que deu um passo à frente de seus companheiros. —
Ah, vocês vieram...
— Senhor Cérbero, por favor, saia do trono. — Insistiu
Edward, aumentando seu tom de voz.
— Ei, o que eu te disse sobre não me chamar de
senhor!? — O caçador se ajeitou no trono, ignorando completamente o
pedido do paladino.
— Cérbero...! – Proferiu Edward, rangendo os
dentes e se aproximando mais do caçador.
Os olhos de Cérbero perceberam a raiva do paladino
devido a sua postura, prevendo que provavelmente ele iria lhe atacar em último
caso.
— Paladinos são todos iguais, não...? — Suspirou
Cérbero, já pensando no seu próximo movimento. — Não podem ver uma coisinha que
ofende seu deus que já ficam irritados, não que eu possa julgar, claro. – Ele
finalizou com uma breve risada.
O punho de Cérbero se abriu completamente e, em
uma investida extremamente veloz, o caçador se pôs na frente do paladino,
cortando os dois metros que haviam entre os dois instantaneamente.
O movimento foi tão rápido que a mente de Edward entrou em branco, somente quando percebeu o toque em seu pescoço ele
compreendeu o tinha acontecido.
Cérbero colocou sua mão no pescoço de Edward o
levantando do chão vagamente. Em segundos o Paladino começou a espernear e a
socar o braço que o deixava suspenso.
Os olhos do caçador adquiriram um brilho dourado
e calmamente Edward parou de lutar, vendo isso, Cérbero afrouxou o aperto
fazendo ele cair no chão inconsciente.
— Edward! – Gritou Voltten, que até aquele
momento não tinha feito nada por receio. Porém, agora mesmo sem a confirmação,
ele tinha certeza que Edward havia morrido em sua frente. — Glans, ajude-o!
O draconato, mesmo não entendo bem a situação e
o que havia acontecido, decide ajudar se prepara para correr e atacar Cérbero.
— Não Glans! – Interrompeu Varis, que estava
surpreendentemente calmo perante a situação.
— Você está louco Varis?! — Respondeu Voltten, assustado e indignado. — Ele o matou!
— Não, isso já aconteceu antes. — Respondeu o
ladino, encarando vagamente os olhos preocupados do mago. – Só foi desnecessário
levantá-lo com o braço.
— Cortesias não são desnecessárias, Varis. — Elogiou
Cérbero, batendo duas rápidas palmas que ecoaram pelo salão e emitiram uma
energia mágica direcionada a Edward. – Esses meses foram eficientes pelo visto,
devo dizer que você passou de um idiota completo para um idiota vagamente
formado.
Edward acordou dois segundos depois das palmas.
Confuso ele recuperou a consciência lentamente e levantou meio cansado.
— Magia de sono, uma das mais fracas e simples
de se aplicar. — Disse o caçador, voltando para o trono e se sentando nele
por puro conforto. — Você foi tão fraco ao ponto de ceder a ela em poucos
segundos. Três meses de treino e você aguentou segundos, venha se comparar a
mim quando aguentar pelo menos um minuto. Agora volta para lá.
— C-C-Certo. — Respondeu o paladino, engasgando
sozinho, ele passou a mão em seu pescoço e sentiu a falta momentânea
de ar que a magia proporcionou após seu efeito ser dissipado.
— Muito bem... — Cérbero focou sua visão nos
quatro. — Agora vamos para a explicação.
Todos se acalmaram perante a figura do caçador
que se provou ser dominante.
Edward se levantou recuperando a estabilidade e
conseguindo dar alguns passos, logo voltou para perto de seus amigos.
— Crist possui um grande poder mágico, mesmo não
sabendo usar magias em si... – Cérbero começou a falar calmamente.
Os três elfos ficaram surpresos, Edward menos que
os outros, mas mesmo assim, seu espanto era visível.
— Quem ser Crist? — Perguntou Glans.
— É a filha adotiva do Edward. — Afirmou Voltten
pensativo.
— Cerca de um mês atrás, outra pessoa com a
mesma capacidade magica foi avistada em Monssolus. — Cérbero continuou a explicar, ignorando a face de surpresa dos três elfos, junto com a expressão de
dúvida de Glans. — O decidido para essa pessoa foi a sua transferência para
Cartan a onde ela está agora.
— Quer dizer que vão enviar Crist para Cartan
também? – Questionou Edward, preocupado em se separar de sua filha adotiva.
— Na verdade vocês vão levá-la para lá. Falta de
mão de obra, sabe como é, não?
A revelação causou um leve choque em todos, que
não esperavam ter que pisar em um lugar tão importante.
Varis até mesmo ficou receoso sobre o que iria
encontrar em um lugar tão movimentado, com diversas pessoas de diversos lugares
como a capital daquele país.
— Junto de vocês, Parysas e Sansa também vão. — Prosseguiu
Cérbero, enquanto deixava aparente um tom de desânimo e raiva. — E eu,
infelizmente, irei ficar aqui, protegendo Argel de o que quer que venha
atrapalhar.
Varis sorriu e riu vagamente, encarando Cérbero
de forma irônica.
— Então eu estou livre de suas missões? – Disse o ladino com ânimo, caçoando calorosamente do caçador.
— Sim. — Disse o caçador levemente incomodado
e talvez até irritado. — Mas não se ache tanto assim, no momento que vocês pisarem na
capital, estarão a serviço do meu irmão...
— Ortros? – Perguntou Edward, se lembrando das
citações feitas por Parysas que comentava sobre o gêmeo do caçador
ocasionalmente.
— Alguém fez a lição de casa. — Elogiou Cérbero,
debochando levemente do paladino. — Ele é idêntico ao Argel em questão de
aparência, com a exceção de uma coisa.
O caçador apontou para o canto de seu olho
esquerdo, o arregalando completamente.
— Ele possui uma cicatriz entre seu olho
esquerdo e sua orelha, e talvez ele tenha uns quilos a mais ou a menos. Para
falar a verdade o Argel envelhecendo e engordando dificulta no disfarce.
— Sabe descrever como ele é? — Perguntou Varis,
visando buscar uma melhor imagem do irmão que, anteriormente, era pouco
mencionado por Cérbero.
— Bem... – Cérbero passou os dedos no pelo
facial que ele chamava de barba, apesar de serem muito curtos para serem
considerados uma. — Ele tem uma cara de velho, uma barba marrom, relativamente
grande e....
Cérbero parou de pensar por um breve instante.
— Eu falei que ele era parecido com o Argel seu
imbecil! O que mais você quer saber? — Implicou o caçador levemente irritado.
Em meio a discussão dos dois, Edward e Voltten
se questionaram sobre a parte obvia da questão. Se Ortros era um gêmeo de
Cérbero, como ele conseguiria ser semelhante a Argel – visto que, ambos
possuíam inúmeras diferenças como fisionomia do rosto, altura e proporções de
diversas áreas do corpo.
“Magia de alterar aparência? ” Questionou
mentalmente o paladino. “Ortros é tão forte quanto Cérbero, pelo menos é o que
Parysas diz, logo ele deve usar feitiços de ilusão para se camuflar com a
aparência de Argel... pelo menos é a única coisa que eu imagino”.
— Eu queria saber a personalidade dele, na
realidade. — Respondeu Varis, refazendo sua pergunta e esperando a segunda
resposta.
— Ah, isso... – Cérbero voltou a pensar e a
acariciar seu pelo facial. — Ele é absurdamente chato, tipo, alguém que não
para de ser irritante um único momento, insuportável, uma pessoa que você quer
dar um soco na cara apenas por existir, entende o que eu quero falar?
— Você não tem ideia. — Ironizou o ladino, já imaginando os futuros
problemas que iria ter. – Não é tanta novidade...
— Tenho uma dúvida. — Voltten tomou a frente, conseguindo o foco de todos — Você poderia descrever a
capital?
— Descrevê-la... bem... é uma cidade como
qualquer outra por dentro, mas óbvio que ela é maior. Por fora ela é coberta
por grandes e grossos muros brancos... se não me engano, tem trinta metros de
altura. – O jeito de falar do caçador trouxe uma leve instigação de Voltten, que
deixou claro em sua face o fascínio pelo local. – O castelo fica no centro, as
áreas da cidade devem ter mudado desde a última vez que eu fui lá.
— Exatamente no centro? — Questionou Voltten, impressionado com os fatos apresentados.
— É, é, no exato centro. — Ressaltou Cérbero, se
acomodando no trono real e continuando a descrever o local. — A cidade foi
construída se baseando em um octógono, o arquiteto deve ter achado que era uma
ideia legal fazer ele no exato centro, ou algo assim. Na verdade, deve ter um
motivo... sei lá.
— Octógono? — Questionou Glans. – O que ser isso?
– Esse nem eu mesmo sei. – Complementou Edward, curioso com a palavra.
– Imagine um círculo redondo. – Vollten começou a
explicar. – Agora imagine um quadrado, adicione uma quinta ponta a ele,
depois uma sexta, depois uma sétima e por fim uma oitava. Um octógono é um
círculo, mas com oito lados...
Varis encarou a face de seus companheiros
confusos. O ladino sabia o que era um octógono, mesmo não conseguindo imaginar
uma cidade assim, mas só o prazer da confusão alheia já valeu a pena.
– Ah... – Edward e Glans assentiram após o término
da explicação do amigo, mas ambos não entenderam o que seria de fato um octógono.
– Quando vamos partir? – Perguntou Edward, após
alguns segundos de reflexão.
— Pelo planejado, amanhã ao meio dia... — Respondeu o caçador enquanto coçava sua cabeça, desarrumando ainda mais seus
cabelos.
— Amanhã? – Questionou o paladino, espantado. –
Mas ainda tenho que explicar para Crist que ela irá se mudar.
— E....? – Cérbero não se importou nem um pouco,
como sempre.
— Vai ser um enorme choque para ela se mudar em
um momento tão repentino, no dia do ataque eu passei mais de três horas para
acalmá-la. – Edward continuou. – Ela me viu desmaiar de camarote quando recebi uma
estocada da lança, não podemos forçar tanto ela.
— Bem.... se você acordar no nascer do sol, terá
umas seis horas para convencê-la, ou talvez a persuadir. – Disse Cérbero de
forma irônica. – Ou talvez Parysas consiga fazer algo. Arruma um jeito aí.
— Não vou conseguir fazer isso em tão pouco
tempo! – Afirmou Edward, receoso sobre o que sua filha iria passar.
Crist ficou desesperada quando Edward desmaiou
no orfanato.
Se não fosse por Parysas afastando completamente
o fogo e escombros no lugar, todos estariam mortos na pobre cabeça da criança
inocente que mal sabia o que lhe rodeava.
Um suspiro e uma grande decepção vieram de
Edward, que questionou para si se esse era realmente o homem que treinou Parysas e Sansa. Em sua mente, o mestre de seu mestre era um sábio sem tamanho,
não um desleixado que não seguia as ordens por puro prazer.
— Certo... — Respondeu o paladino desanimado,
saindo da sala deixando os quatro e se retirando para seu quarto.
– Acho que devemos ir junto. – Afirmou Voltten, se virando e acompanhando o paladino.
— Bem... nós também vamos. — Disse Varis com
metade de seu corpo para fora da sala já. — Certo Glans?
— Vamos? – Questionou o draconato, imóvel no meio
da sala.
— Vem logo! – Implicou o ladino, chamando o
amigo para perto de si.
O mesmo obedeceu e se retirou da sala deixando
Cérbero sozinho.
O silencio da noite foi quebrado com o iniciar de
chuva seguida de fracas trovoadas.
— Sozinho... acho que eu tenho que me acostumar
a isso de agora em diante. — Falou o caçador, após um breve suspiro.
Agora que era o único protetor do rei, não
poderia sair de perto do mesmo.
Sem caçadas, sem perseguições, sem brigas de
bar, sem brigas com demônios... era como se a única diversão do caçador fosse
tirada.
– Boa sorte com eles, Ortros. – Cérbero falou consigo mesmo enquanto descansava. – Você tem os relatos meus e de Parysas, vai saber como cuidar dessas crianças, mas você nunca foi um bom professor, não me admire que você falhe tentando dar sermão.